O meu avô materno chamava-se Luís. Era baixo, tinha os olhos esverdeados e usava um farto bigode que lhe cobria completamente o lábio superior.
Às vezes, no meio da manhã, ia à nossa casa. Sentava-se na cozinha, na única cadeira de espaldar alto que lá havia, e esperava que a minha mãe lhe preparasse um café de cevada com leite.
Bebia-o depois com vagar, sorvendo-o da chávena de faiança, por vezes, quando não tinha paciência para esperar que o café arrefecesse, deitava-o no pires que depois chegava à boca, segurando-o entre os indicadores e os polegares, num gesto elegante, que fazia ressaltar as suas mãos pequenas, morenas, as mãos dos Silvas, herdadas por todos os filhos e filhas.
Era um fumador viciado e tinha o indicador da mão direita negro de nicotina. Eu gostava de vê-lo preparar o cigarro, retirava a mortalha do maço, acamava depois o tabaco que retirava duma caixa que trazia num bolso do colete, enrolava tudo e acabava fechando o cigarro com saliva, levando-o aos lábios.
O meu pai dizia que o meu avô era um putanheiro e de facto assim era, manteve durante a vida uma amante de quem teve nove filhos, que os dez filhos da minha avó nunca reconheceram como irmãos.
Por isso eu estava proibida de beijá-lo. Cumprimentava-o beijando-lhe a mão, dizia "avô, sua benção" e ele respondia "deus te abençoe, minha neta e te faça uma santa".
Era um grande amador de música e por vezes levava-me com ele, aos domingos, a escutar a banda que tocava no coreto do jardim municipal, recordo essas manhãs que na minha memória eram sempre ensolaradas e recordo também que depois do concerto me levava a ver o lago onde no centro a estátua de duas crianças enlaçadas aproximavam delicadamente os pés da água, como se a receassem.
Quando voltávamos para casa, eram horas do almoço, a minha mãe insistia com ele para que ficasse, eu gostava de vê-lo juntar uma colher de vinho doce ao caldo de carne que invariavelmente se comia ao domingo,numa ementa que se completava com bifes de alcatra, suculentos e no final o pudim de veludo com o caramelo a saber a laranja, sempre feito pelo meu pai.
Num quinze de agosto pela manhã, o meu avô foi atropelado quando regressava do mercado onde tinha ido comprar atum e uvas do Porto Santo, muito apreciadas pela minha avó.Essas compras ficaram espalhadas na avenida quando o levaram de emergência para a cruz vermelha, onde o meu pai foi vê-lo antes de o levarem para o hospital. Parece que o meu pai lhe perguntou"então, senhor Luís, como é que isso vai?" ao que ele terá respondido "nada bem". Nunca mais disse nada. No hospital diagnosticaram-lhe fractura da base do crâneo.Morreu dois dias depois.
Não fui ao funeral, fiquei em casa com as minhas primas, aquela era a primeira vez que a morte se aproximava de nós, ficámos a conversar, cheias de medo e de espanto.
O verão continuou o seu percurso e um mês depois a minha mãe fez anos.Por insistência da minha avó,que se tinha vestido de luto rigoroso, onde nem o chapéu com véu faltou, a minha mãe vestiu-se de branco e lembro-me que estava linda. Festejou os anos com as manas, os cunhados, as sobrinhas, com o meu pai e comigo.
A nossa gata preta, a primeira que tivémos e se chamava Ming apareceu na sala chamada pelas crianças.Mas logo as deixou, a caminho do sótão e da pequena janela que dava para o telhado, à caça de qualquer ave tardia.
O outubro estava a chegar e com ele as aulas, em novembro era o dia de finados ou das almas, como aprendi a chamá-lo. Nesse ano fomos ao cemitério levar flores ao meu avô, foram não-me-deixes ou despedidas de verão, flores de muitas cores que nunca mais voltámos a comprar.