sábado, 20 de junho de 2015

A MENINA É NETA DE QUEM?


O meu avô materno chamava-se Luís. Era baixo, tinha os olhos esverdeados e usava um farto bigode que lhe cobria completamente o lábio superior.
Às vezes, no meio da manhã, ia à nossa casa. Sentava-se na cozinha, na única cadeira de espaldar alto que lá havia, e esperava que a minha mãe lhe preparasse um café de cevada com leite.
Bebia-o depois  com vagar, sorvendo-o da chávena de faiança, por vezes, quando não tinha paciência para esperar que o café arrefecesse, deitava-o no pires que depois chegava à boca, segurando-o entre os indicadores e os polegares, num gesto elegante, que fazia ressaltar as suas mãos pequenas, morenas, as mãos dos Silvas, herdadas por todos os filhos e filhas.
Era um fumador viciado e  tinha o indicador da mão direita negro de nicotina. Eu gostava de vê-lo preparar o cigarro, retirava a mortalha do maço,  acamava depois o tabaco que retirava duma caixa que trazia num bolso do colete, enrolava tudo e acabava fechando o cigarro com saliva, levando-o aos lábios.

O meu pai dizia que o meu avô era um putanheiro e de facto assim era, manteve durante a vida uma amante de quem teve nove filhos, que os dez filhos da minha avó nunca reconheceram como irmãos.
Por isso eu estava proibida de beijá-lo. Cumprimentava-o beijando-lhe a mão, dizia "avô, sua benção" e ele respondia "deus te abençoe, minha neta e te faça uma santa".
Era um grande amador de música e por vezes levava-me com ele, aos domingos, a escutar a banda que tocava no coreto do jardim municipal, recordo essas manhãs que na minha memória eram sempre ensolaradas e recordo também que depois do concerto me levava a ver o lago onde no centro  a estátua de duas crianças enlaçadas aproximavam delicadamente os pés da água, como se a receassem.

Quando voltávamos para casa, eram horas do almoço, a minha mãe insistia com ele para que ficasse, eu gostava de vê-lo juntar uma colher de vinho doce ao caldo de carne que invariavelmente se comia ao domingo,numa ementa que se completava  com bifes de alcatra, suculentos e no final o pudim de veludo com o caramelo a saber a laranja, sempre feito pelo meu pai.

Num quinze de agosto pela manhã, o meu avô foi atropelado quando regressava do mercado onde tinha ido comprar atum e uvas do Porto Santo, muito apreciadas pela minha avó.Essas compras ficaram espalhadas na avenida quando o levaram de emergência para a cruz vermelha, onde o meu pai foi vê-lo antes de o levarem para o hospital. Parece que o meu pai lhe perguntou"então, senhor Luís, como é que isso vai?" ao que ele terá respondido "nada bem". Nunca mais disse nada. No hospital diagnosticaram-lhe fractura da base do crâneo.Morreu dois dias depois.
Não fui ao funeral, fiquei em casa com as minhas primas, aquela era a primeira vez que a morte se aproximava de nós, ficámos a conversar, cheias de medo e de espanto.

O  verão continuou o seu percurso e um mês depois a minha mãe fez anos.Por insistência da minha avó,que se tinha vestido de luto rigoroso, onde nem o chapéu com véu faltou,  a minha mãe vestiu-se de branco e lembro-me que estava linda. Festejou os anos com as manas, os cunhados,  as sobrinhas, com o meu pai e comigo.
A nossa gata preta, a primeira que tivémos e se chamava Ming apareceu na sala chamada pelas crianças.Mas logo as deixou, a caminho do sótão e da pequena janela que dava para o telhado, à caça de qualquer ave tardia.
O outubro estava a chegar e com ele as aulas, em novembro era  o dia de finados ou das almas, como aprendi a chamá-lo. Nesse ano fomos ao cemitério levar flores ao meu avô, foram não-me-deixes ou despedidas de verão, flores de muitas cores que nunca mais voltámos a comprar.

 

domingo, 21 de outubro de 2012

GOLDEN GATE


 
Chego à Praça, vinda do lado norte e olho as convidativas cadeiras de verga do Café, dispostas no passeio. É um passeio largo onde jacarandás centenários, ainda floridos, fazem um dossel sobre os bancos dispostos aqui e ali, para descanso ocasional de quem passa e se senta para olhar o mundo, por instantes.
Às vezes entro no Café e vou para o varandim, subindo a escada de madeira que leva ao andar superior, é uma bela escada, tem qualquer coisa de hollywoodesco, e lá, se disponível, escolho uma mesa com vista para o Palácio e para o mar e fico a olhar os passantes, inventando-lhes vidas.
Mas hoje escolho uma mesa no passeio, antes de me sentar virei o coxim, à procura de qualquer moeda caída no assento, quem sabe não encontro o euro necessário para o meu café curto.
Mas não havia moeda alguma, nem mesmo o resto de um arco iris. Apesar do pequeno desapontamento, encomendei o café e fechando os olhos para melhor saborear o sol, fiquei à espera que mo servissem.

 

domingo, 23 de setembro de 2012

romeu e julieta




Três dias depois do fim, ainda permanecia inerte.Os pontos cardeais de nada serviam e a bússola repousava sobre a mesa, apenas como um objecto decorativo.Não sabia onde ficava o norte, mas isso  nada importava,pois queria ir para o sul.Queria ir para a casa que ficava no largo cujo nome havia esquecido, só a casa existia na memória, alta apenas o suficiente para que alguém morresse se de uma janela se despenhasse.A cobertura era um terraço donde se via o mar,ao alcance da mão, quase.

Num dos quartos havia bonecas de loiça e uma conversadeira, aos pés da cama.Na sala havia um piano sempre aberto, sofás vermelhos de damasco, e um quadro onde um romeu que não era montecchio tentava alcançar uma julieta que não era capuleto, num esforço nunca recompensado, porque eternamente estático.

Chopin saía do piano em nocturnos diurnos trazidos pelas mãos da pianista, outras vezes quem vinha era  Shubert, que depois de se ter apresentado ia para o  quarto da costura, onde todas as tardes se bebia um gorreana, acompanhado por bolachas maria com marmelada.

Ao fim dos três dias caíu a primeira chuvada de outono.Foi quando decidiu partir. Foi como estava, só as costas lhe doíam.









sexta-feira, 9 de março de 2012

UMA PEQUENA MANHÃ



Henriqueta Evangelista acordou suavemente. O relógio digital marcava oito e trinta, o cão brincava debaixo da cama e as pombas faziam-se ouvir no parapeito da janela.
Quando abriu os olhos viu no alinhamento do olho direito a mão pousada sobre a cama, vista daquela perspectiva assemelhava-se a um pequeno deserto de areia, onde as veias e os ossos pareciam formar dunas.

 Levantou-se sem pressas, foi erguer as persianas e aproveitou para olhar o dia. O céu começava a ganhar cor e a orquídea continuava em luta pela floração, quanto mais tarde florisse, mais tarde morreria, pensou, talvez durasse até ao verão.

Foi quando sentiu que ele tinha acabado de chegar, já não vinha há algum tempo, chegava sempre assim, em silêncio e inesperadamente, depois partia e deixava recordações.
"Que memórias me trouxeste hoje", perguntou-lhe e ficou à espera que ele fizesse presente algum passado, mas ele apenas respondeu " estás a olhar-me com espanto não sei porquê", mas ela não diz nada, passaram já tantos anos que mais nenhuma resposta é necessária.

Por isso, voltou-lhe as costas e foi para a cozinha, escolheu duas maçãs vermelhas, lavou-as cuidadosamente, depois partiu-as com gestos lentos, "eis o meu corpo" e com elas num saco foi para o jardim que circundava a casa, por onde costumava vagabundear durante horas, esquecida do tempo.

Deu-lhe para ir ver as árvores, começou a enumerá-las baixinho,  anoneira, papaieira,  mangueiro, abacateiro,jamboeiro,pitangueira,gostava muito da pitangueira, as flores cheiravam a flor de laranjeira e os frutos tinham uma forma curiosa, em gomos, e um caroço enorme, inesperado para o tamanho do fruto.

Em criança tinha brincado com pitangas, trocara enxovais das bonecas por elas e depois  colocava-as cuidadosamente numa caixa de cartão.

Às vezes vinham maduras, eram vermelhas e frágeis, desfaziam-se facilmente em água e só o caroço ficava na caixa, amarelo, evidente, a deixá-la triste. Mas ainda não era o tempo das pitangas e também já não era o tempo da infância, era um tempo de nevoeiro, que tinha começado a descer e tornava difícil o regresso a casa.

Agora via o gato da Marta,  seguia à sua frente levando-a até à mesa onde jaziam cartas de jogar à espera que ela completasse o solitário



domingo, 25 de dezembro de 2011

Natal

Tenho amigos
antigos
certos
fiéis
de todas as horas
para todas as horas

Tenho amigos
que me amam
que me escutam
que me aconselham
que me ajudam

Tenho amigos
que não me esquecem
que me admiram
que me defendem
que rezam por mim todos os dias

Tenho amigos que me telefonam
que me escrevem
que não me telefonam
nem escrevem
mas pensam em mim

mas nenhum me abraça
com um abraço maternal,
aquele que se faz com dois braços
e um colo
e cria um espaço terno e invulnerável
que nos defende de tudo,
até da morte...

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

TRANSLAÇÃO

deitar o esqueleto sobre a cama
esticar devagar os membros inferiores
deixar flectida em ângulo  a perna esquerda
unir como rezando as mãos
procurar junto à almofada o livro
escutar o oceano,
o que escuto é pacífico,
e pacifico-me depois com profecias
habito nelas
ou nos sonhos onde descubro raízes ou temores
acordo e recomeço,
como um planeta dou a volta ao dia
numa translação infinitamente pequena
de novecentos e sessenta minutos
até deitar o esqueleto sobre a cama
e esticar devagar os membros inferiores
deixando a perna esquerda flectida, levemente