Henriqueta Evangelista acordou suavemente. O relógio digital marcava oito e trinta, o cão brincava debaixo da cama e as pombas faziam-se ouvir no parapeito da janela.
Quando abriu os olhos viu no alinhamento do olho direito a mão pousada sobre a cama, vista daquela perspectiva assemelhava-se a um pequeno deserto de areia, onde as veias e os ossos pareciam formar dunas.
Levantou-se sem pressas, foi erguer as persianas e aproveitou para olhar o dia. O céu começava a ganhar cor e a orquídea continuava em luta pela floração, quanto mais tarde florisse, mais tarde morreria, pensou, talvez durasse até ao verão.
Foi quando sentiu que ele tinha acabado de chegar, já não vinha há algum tempo, chegava sempre assim, em silêncio e inesperadamente, depois partia e deixava recordações.
"Que memórias me trouxeste hoje", perguntou-lhe e ficou à espera que ele fizesse presente algum passado, mas ele apenas respondeu " estás a olhar-me com espanto não sei porquê", mas ela não diz nada, passaram já tantos anos que mais nenhuma resposta é necessária.
Por isso, voltou-lhe as costas e foi para a cozinha, escolheu duas maçãs vermelhas, lavou-as cuidadosamente, depois partiu-as com gestos lentos, "eis o meu corpo" e com elas num saco foi para o jardim que circundava a casa, por onde costumava vagabundear durante horas, esquecida do tempo.
Deu-lhe para ir ver as árvores, começou a enumerá-las baixinho, anoneira, papaieira, mangueiro, abacateiro,jamboeiro,pitangueira,gostava muito da pitangueira, as flores cheiravam a flor de laranjeira e os frutos tinham uma forma curiosa, em gomos, e um caroço enorme, inesperado para o tamanho do fruto.
Em criança tinha brincado com pitangas, trocara enxovais das bonecas por elas e depois colocava-as cuidadosamente numa caixa de cartão.
Às vezes vinham maduras, eram vermelhas e frágeis, desfaziam-se facilmente em água e só o caroço ficava na caixa, amarelo, evidente, a deixá-la triste. Mas ainda não era o tempo das pitangas e também já não era o tempo da infância, era um tempo de nevoeiro, que tinha começado a descer e tornava difícil o regresso a casa.
Agora via o gato da Marta, seguia à sua frente levando-a até à mesa onde jaziam cartas de jogar à espera que ela completasse o solitário
Agora via o gato da Marta, seguia à sua frente levando-a até à mesa onde jaziam cartas de jogar à espera que ela completasse o solitário