quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Mau tempo no canal

João Garcia chegara ao ponto do Zimbreiro de onde se descobria o Canal, estendido entre a depressão da Horta e o cone escuro do Pico, àquela hora estrangulado por uma nuvem lilás.A falésia não dava ali lugar a nada que fosse verdadeiramente verde; só alguma moita de "bacelo", que os caiadores apanham com risco de vida para comporem as brochas, espreitava na pequena queimada. De vez em quando, um bando de pombos bravos cobria o céu, e o seu levante soava esvoaçado e súbito na rocha aprumada ao mar.
Uma fenda de lava atraíu a atenção de João Garcia. Estava mais contra a terra, abrigada pelo resto de um muro de um antigo cerrado de trigo, agora inçado de grama e de junçais de baga seca. Um forrozinho de penas e de palhas vestia aquele recôncavo.E no meio da aspreza do Zimbreiro, entre o mar escuro da hora da tarde e da rocha empinada e negra, aqueles restos de ninhos pareciam um último apelo à vida, uma esperança escapada à dureza e ardor do verão. João Garcia agarrou-se aos penedos que defendiam a fenda forrada e marinhando por eles com uma ligeireza perigosa, contendo a respiração na esperança de achar um ser vivo,espreitou o esconderijo. Um pombo espantado, deixando um punhado de penas na boca da furna, ergueu voo. Um tiro partiu. A bala zunira a pouca distância e João Garcia, estendendo-se no chão, gritou:
-Eh, lá!...

(excerto do capitulo XXI, do livro Mau tempo no canal, de Vitorino Nemésio)


PS. Um dos meus livros favoritos, um romance sobre amores ambíguos

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