Vivi com Ravic durante algum tempo. Na altura tinha catorze anos e fumava Du Maurier, embalado numa caixa vermelha de dez cigarros, uma caixa simples, mas sofisticada, onde os cigarros vinham envolvidos num papel dourado.O tabaco inglês era tão aromático que ao queima dava prazer até a quem não o fumava.
Sofri durante todo o tempo que vivi com o Ravic, sofri com a vida nocturna e clandestina que levava e com as muitas cirurgias que fazia, numa sala a que uma luz fluorescente dava um ar lúgubre.
Felizmente havia uma mulher alta e de gabardine que muitas vezes o esperava à saída da clínica.Juntos desciam a avenida onde os candeeiros, banhados pela neblina da quase madrugada, projectavam luz no passeio húmido que brilhava e lhes reflectia as sombras, quase iguais.Costumavam parar num café onde compravam uma garrafa da Calvados que o empregado embrulhava em papel de jornal. Depois seguiam para a pensão decrépita onde Ravic vivia. Subiam até ao quarto, frio e impessoal, apenas iluminado com a luz que chegava da rua. Sentavam-se sobre a cama, vestidos e começavam a beber, lentamente, abraçando-se, como se o outro fosse tudo o que lhes restava naquela Paris ocupada pela Alemanha.
Anos mais tarde, num passeio matinal , passei pela primeira vez pelo Arco do Triunfo, mas não me lembrei do Ravic. Nessa altura ele já tinha uma identidade física, era Charles Boyer e a amante de gabardine a Ingrid Bergman.Quanto ao mítico Calvados, que eu não esquecera, lembro-me de o ter bebido pela primeira vez no apartamento da madame X, para os lados da Place d'Orleans. Foi num Carnaval, em fevereiro, os dois copos estavam sobre uma mesa de madeira, grande e rústica, com que sempre sonho quando me penso em trânsito para um outro lado.
(Arco do Triunfo é um livro de Erich Maria Remarque e esta é a memória que dele conservo)
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